Sobre eles e Nós

Hoje me pego escrevendo sobre eles. Li sobre eles em livros. Teorias tentam me falar sobre os fenômenos que criam e recriam – eles, os mesmos que fazem deles, eles, e de nós, nós.
Sei hoje, um pouco mais que sabia antes, e às vezes busco nem saber. Se eu tivesse dons artísticos, comporia uma canção… dessas de minar. Embalaria minhas memórias em um baú e as deixaria adormecer em profundo esquecimento.
Mas eu não me esqueço. Dos rostos e das histórias.
Do cheiro de creolina nos corredores, do cheiro do sabão em barra azul usado para lavar as roupas. Eu não me esqueço dos cheiros.
Eu não me esqueço da imagem que vi se repetir tantas vezes, para normalizar.
 Mas eu não consegui.
Pessoas, é… são pessoas. Amontoadas em cubículos. Não tem como sentar, esperar a vez, revezar…. dormir quando der, comer o que tiver. Estragado? Come do mesmo jeito.
Não há dignidade, sequer humanidade. Bichos, assim como os bichos usados para satisfazer os desejos de consumo, eles estão lá para que nós estejamos aqui, falando sobre eles, trabalhando para a continuidade da engrenagem que faz deles um bom negócio para nós.
Eu deveria falar de orçamento, de fundo público, de como o capital usa o dinheiro do nosso trabalho para ganhar mais dinheiro usurpando a humanidade deles. Mas talvez eu não consiga falar tão bem disso. 
Mesmo que eu use termos rebuscados, técnicos e enfadonhos… eu queria mesmo era falar deles. Eu queria falar para eles. É desolador que não percebam, assim como nós não percebemos, eu mesma não percebia. E você aí, sabia? 
Eles passam a vida sendo convencidos de que estão excluídos, são inúteis, não se encaixam… Saber, hoje, um pouco mais que eu soube antes, me faz perceber que são eles, cada vez mais, um bom negócio ao capital. 
Pode ser doloroso para vocês, assim como foi para mim, perceber que eles nos são úteis, seja na camisa branca e barata que compramos para ser descolados, seja na vaga de concurso tão sonhada para trabalhar gerenciando suas vidas. Vidas? 
Me pergunto se um dia vou esquecê-los. Todos os dias, o conjunto deles se renova, é uma roda que não para de girar. E nós? Sigamos vivendo essa vida meio anestesiados, distantes, cada vez mais longe das lutas por um modelo diferente de sociedade, alimentando nossos avatares nas redes sociais. 
Quem me vê andando por aí, não saberá que eu nunca mais fui a mesma depois deles.  
Há uma ferida de humanidade aberta e que é muito difícil de cicatrizar. 
Mas ainda guardo um sonho. Quem sabe um dia eles possam receber de nós, mais que nosso desejo de nos vingar.


(Dos desabafos na escrita da tese – outubro de 2017)

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